Continuidade educativa e transições entre ciclos –
conceitos básicos
A transição tem a ver com “passagem de um
lugar, de um estado ou de um assunto para outro. É uma passagem que comporta
uma transformação progressiva; uma evolução.” (DICIONÁRIO DA
LÍNGUA PORTUGUESA). Segundo Serra (2004), a mudança de ambiente educativo exige
sempre uma adaptação por parte da criança, já para Vasconcelos (2009, p.
50) as transições “lembram ritmos de passagem, tempo de passagem” ou o
“atravessar da fronteira”. A transição da criança dum ciclo para outro
nem sempre é devidamente acompanhada. Já Torrado (1994) diz que quando entra
no jardim de infância ou na escola a criança já vem “apetrechada” com o
fundamental e o “mais consistente da sua aprendizagem de pessoa.” (p. 47). Para
Niza (2002) as transições nem sempre são nocivas ou geradoras de danos no
desenvolvimento e aprendizagem das crianças; são naturais e não têm de
ser vistas como algo negativo, dão-nos a noção do movimento das nossas
vivências: “ É-nos próprio, portanto próprio é natural, a transição (…)
vivemos para o trânsito. E às vezes, incomodamo-nos excessivamente, não acreditando nos efeitos
vantajosos das discrepâncias.” As transições não têm de ser negativas.
Santos (2002) diz que “ pelo contrário, podem constituir uma oportunidade de
crescimento (…) são momentos em que ficamos mais frágeis.”(p. 67). Assim
podemos concluir que as transições requerem cuidado para decorrerem de modo
natural, sem prejuízo para o sucesso educativo, tendo o apoio de figuras de
referência que serão facilitadoras dessa transição.
Quanto à continuidade educativa, Cruz (2008: 74)
define a mesma “(…) como um processo global de formação do indivíduo que
se desenvolve em etapas harmoniosamente conectadas, em que umas condicionam as
outras, por recurso a estratégias de complementaridade de recursos físicos e
humanos”. Segundo Zabalza (2004), citado por Cruz (2008: 74) “a ideia de
continuidade está subjacente à de união, coerência e complementaridade”,
“continuidade não implica repetição, implica introdução ao que é novo, a
novas tarefas, apoiadas em significados construídos e experienciados” (Woodhead
(1981), referido por Marchão, 2002: 34).
Continuidade educativa vs Articulação
Como é feita esta articulação? O conceito de
articulação remete-nos para “encadeamento, conexão; pontos de união entre peças
de uma estrutura; juntura por onde partes contíguas se separam facilmente, em
dada época, sem rutura.” Sendo , também, pertinente saber o significado de
articular, “ligar de forma lógica; unir; ligar.” (dicionário da língua
portuguesa). No campo educativo, a articulação curricular sugere uma transição
sem ruturas entre ciclos, onde os docentes da educação pré-escolar e do 1.º
ciclo devem gerir os currículos construindo pontes que devem ajudar as crianças
no seu percurso de passagem. Aniceto (2010, p. 83) refere-se à articulação como
“o estabelecimento de mecanismos teóricos e práticos, suscetíveis de
encontrarem respostas adequadas e facilitadoras do processo de transição entre
níveis e ciclos diferentes, apoiados nos conhecimentos e vivencias anteriores
da criança, promovendo a construção de saberes e competências, entre docentes
do Pré-Escolar e do 1.º CEB, na base do desenvolvimento de formas de trabalho
colaborativo e de novas formas de organização do trabalho ao nível dos órgãos
de coordenação”.
Apesar de a articulação curricular e a continuidade
educativa se relacionarem e complementarem, existem diferenças entre ambas.
Segundo Dinello (1987), citado por Carvalho (2010: 58), “a continuidade
educativa é uma perceção exterior do fenómeno, enquanto que numa observação
mais profunda se compreende a necessidade de uma articulação para um maior
aproveitamento dos ciclos, certamente ligados, mas intrinsecamente
diferenciados. Na visão da continuidade aparece uma imagem do produto
objetivado, na articulação é o processo que se dimensiona.” A articulação
curricular cria nexo entre níveis educativos diferentes, enquanto que a
continuidade educativa diz respeito à forma como estão organizados os saberes
(Serra, 2004). A autora refere ainda que a articulação curricular são “…
todas as actividades promovidas pela escola com o intuito de facilitar a
transição entre a educação pré-escolar e o 1.ºCEB, sejam elas actividades
dentro do horário lectivo ou fora dele, vividas dentro e fora da escola, …”
sendo que “… as diferenças metodológicas existentes entre a educação pré-
escolar e o 1.º CEB não são nefastas, em si. Podem, até, trazer mais- valias ao
desenvolvimento global das crianças.” (p. 77).
A continuidade nos normativos legais
As OCEPE (Despacho n.º 5220/97) referem
que “cabe ao educador promover a
continuidade educativa num processo marcado pela entrada para a educação
pré-escolar e a transição para a escolaridade obrigatória. (…) é também
função do educador proporcionar as condições para que cada criança tenha uma
aprendizagem com sucesso na fase seguinte competindo-lhe, em colaboração com
os pais e em articulação com os colegas do 1.º ciclo, facilitar a transição
da criança para a escolaridade obrigatória” (ME, 1997: 28).
O Decreto-Lei 115-A/98 de 4 de Maio, com o intuito de promover a autonomia das escolas,
referindo no artigo 6.º que “a constituição de agrupamentos de escolas
considera, entre outros, critérios relativos à existência de projetos
pedagógicos comuns, à construção de percursos escolares integrados, à
articulação curricular entre níveis e ciclos educativos (…).”
O Decreto-Lei 6/2001, no artigo 3.º, alíneas a) e
b), refere que “a organização e
a gestão do currículo subordinam-se (…) a princípios orientadores [como a] coerência
e sequencialidade entre os três ciclos de ensino básico e articulação com o
ensino secundário; [e] integração do currículo e avaliação, assegurando que
esta constitua o elemento regulador do ensino e da aprendizagem.”
A Circular n.º17/DSDC/DEPEB/2007 indica-nos
ainda que “a articulação entre as várias etapas do percurso educativo implica
uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada etapa a função de completar,
aprofundar e alargar a etapa anterior, numa perspetiva de continuidade e
unidade global de educação/ensino.”
Educação pré-escolar vs 1º
ciclo do ensino básica
Na educação pré-escolar a
criança constrói o seu próprio conhecimento de maneira lúdica, consoante o seu
desenvolvimento, utilizando estratégias e materiais que lhe sejam familiares e
situações palpáveis do dia-a-dia, de forma a que a educação nesta altura seja
uma experiência prazerosa com conforto e segurança, mas com precaução não só em
relação ao desenvolvimento mas também à preparação para níveis de abstração
mais elaborados, tendo em atenção o seu nível de desenvolvimento nas várias
áreas. Ao pesquisar a organização do tempo, do espaço e a abordagem
metodológica dos dois ciclos, aferi que cada nível evidencia características
próprias, “ no que respeita quer aos objectivos quer às metodologias
específicas.”(Serra, 2004, p. 76)
Tabela 1
Comparação da gestão das
actividades entre pré-escolar e 1º ciclo .”(Serra, 2004, p. 76)
A tabela 1 mostra, que, na Educação Pré-escolar, as crianças têm mais autonomia e gerem o seu tempo, sendo o educador o seu mediador. Ao contrário do 1.º CEB que apresenta uma estrutura mais rígida e controlada apoiada em aprendizagens formais principalmente na aquisição de conhecimentos em áreas específicas do saber (leitura, escrita, matemática, estudo do meio e expressões). A utilização do espaço e do tempo é decidida pelo professor, mas a relação professor-aluno tem duplo sentido, independentemente das opções metodológicas e curriculares dos professores que podem tornar o currículo mais ou menos fechado/tradicional ou aberto/flexível.
Na tabela seguinte existe uma relação entre as áreas
de conteúdo desenvolvidas nas OCEPE e o plano curricular do 1.º CEB.
Tabela 2
Comparação das áreas de conteúdo (adaptado de Serra, 2004, pp. 83- 84)
Através da observação da tabela 2 podemos verificar
que existem semelhanças entre os dois níveis de ensino, no que diz respeito aos
conteúdos a tratar e apesar da terminologia um pouco diferente, existe uma
relação que poderá facilitar a articulação curricular, possibilitando um
trabalho de continuidade, protegendo as características das crianças de ambos
os níveis referidos.
A análise e reflexão da tabela, indicam que as
orientações curriculares e o plano curricular são idênticos, salientando a
diferença do aprofundamento dos conteúdos a trabalhar. Assim no plano
curricular do 1.º CEB, as temáticas são discriminadas por blocos e repartidas
ao longo dos quatro anos de escolaridade, ao passo que nas orientações
curriculares não se encontram essas
separações e são feitas apenas sugestões, o que concede ao educador uma maior
flexibilidade, contrariamente do que acontece com o professor de 1.º ciclo, que
tem de ter gerir o tempo de uma outra forma, pois tem de lecionar/fazer
aprender um conjunto de saberes num limitado período.
Constata-se, ainda, que ambos os níveis têm uma
concordância centralizada no desenvolvimento da criança na área da formação
pessoal e social, o que, não obstante as suas diferenças, significa que existem
objetivos em comum e que os seus princípios não são assim tão diferenciados, o
que pode levar a uma criação articulada de aptidões para que haja um trabalho
de continuidade e uma adaptação positiva da criança de modo a assegurar o
sucesso escolar.
A Circular nº 17/DSDC/DEPEB/2007 consolida esta criação
articulada de saberes ao mencionar no ponto 5 que: “A articulação entre as
várias etapas do percurso educativo implica uma sequencialidade progressiva,
conferindo a cada etapa a função de completar, aprofundar e alargar a etapa
anterior, num a perspetiva de continuidade e unidade global de
educação/ensino.” Para que a continuidade e sequencialidade dos objetivos e
pontos em comum se efetue, é essencial uma atitude proativa e um conhecimento
rigoroso e ciente de que estes conteúdos existem, por parte dos professores e
educadores.
Importância do educador / professor na transição
Roldão (2004) refere que cabe a cada docente, tendo
em atenção os objetivos de cada nível, justificar as atividades que propõe
desenvolver, o seu porquê, quando, como as vai realizar e que resultado
pretende alcança com elas. Neste sentido, Serra (2004) alega que. para que
exista articulação curricular, é fundamental que os professores do 1.º Ciclo do
Ensino Básico tenham, em consideração os conhecimentos que as crianças trazem
da educação pré-escolar, que percebam as diferenças de modelo curricular entre
os dois níveis educativos e que encontrem, na educação pré-escolar, uma base
educativa que lhes será muito útil para desenvolver o seu projeto curricular.
(p. 91). Por sua vez, os educadores de infância deverão: conhecer o nível
seguinte, o seu modelo curricular e as
exigência impostas pela avaliação formal no final de cada ciclo. É
importante, também, conhecer o novo espaço em que se irá desenrolar o 1.º CEB,
as potencialidades de desenvolver projectos comuns e a preparação das crianças,
ao nível de competências essenciais, para que estas se sintam preparadas para
os novos desafios impostos pela escolaridade obrigatória. (p. 91).
É imprescindível que educadores e professores se
relacionem, planifiquem atividades conjuntas onde as crianças de ambos os
níveis participem com intenção de facilitar o processo de transição. Figueiredo
(2006) , diz que esta prática está longe de ser usual e de produzir efeitos
reais nas aprendizagens das crianças. Contudo os benefícios deste trabalho
conjunto não podem ser desconsiderados no processo de desenvolvimento contínuo,
que deve ter em consideração as aprendizagens efetuadas, tendo em conta que
cada criança apresenta ritmos de aquisição de conhecimentos distintos. Por
isso, apesar de a Educação Pré-Escolar e do Ensino Básico serem duas valências
diferentes, uma é a continuação da outra, daí a necessidade de o Ensino Básico
se alicerçar nos conhecimentos e vivências que as crianças têm, tentando
encontrar uma articulação que beneficie um crescimento apoiado e o sucesso das
crianças: como diz Serra (2004, p. 78) “quanto mais os docentes se
inteirarem das especificidades e similitudes entre educação pré-escolar e 1.º
CEB, mais se enriquece o universo pedagógico dos professores e educadores e
maiores serão as oportunidades de sucesso para as crianças”.
Por isso, apesar de a Educação Pré-Escolar e do
Ensino Básico serem duas valências diferentes, uma é a continuação da outra,
daí a necessidade de o Ensino Básico se alicerçar nos conhecimentos e vivências
que as crianças têm, tentando encontrar uma articulação que beneficie um crescimento
apoiado e o sucesso das crianças: como diz Serra (2004, p. 78) “quanto mais
os docentes se inteirarem das especificidades e similitudes entre educação
pré-escolar e 1.º CEB, mais se enriquece o universo pedagógico dos professores
e educadores e maiores serão as oportunidades de sucesso para as crianças”.
Conclusões
Tanto as OCEPE (2016) como o programa do 1.º CEB
começam com uma sequência de princípios orientadores e pedagógicos que nos
encaminham para uma articulação entre os dois níveis de ensino. As
aprendizagens ativas, relevantes, variadas e adaptadas, onde a criança distinga
as suas possibilidades e os seus progressos, com base em interacções sociais
que respeitem as diferentes culturas e promovam a vida democrática, contribuem
para ambientes de aprendizagem cooperativa e estimulam a criança na construção
do seu próprio conhecimento e da sua aprendizagem, isto é, “requerem do aluno
um processo de regulação da aprendizagem que é o que lhe permitirá adquirir uma
autonomia enquanto aprendiz - aprender a aprender” (Alonso, 2005, p. 9). E,
assim, sendo, segundo Vasconcelos (1997): (…) o docente, professor ou educador,
tem de encarar o processo de ensino e de aprendizagem, partindo das crianças
reais e concretas a que se destina, inseridas num contexto específico, e
vendo-as como sujeitos capazes de regular. “O mais importante é tratar os
meninos como pessoas”: a transição da Educação Pré-escolar para o 1.º ano de
escolaridade informação e apreender o mundo que a circunda, mediante a sua
ajuda e apoio. (p. 34).
Deve partir, de nós, profissionais, a necessidade de
criar espaços de partilha e colaboração, com o objetivo de proporcionarem
atividades conjuntas, evitando as barreiras entre os dois níveis e viabilizando
o processo de transição das crianças. A partilha de momentos entre os dois
ciclos é muito importante para as crianças, pois estas criam expetativas sobre
a sua entrada na escola e muitos dos seus receios são desmitificados durante esses momentos, o que
torna deveras importante que os docentes desenvolvam atividades que permitam a
articulação curricular, considerando-a “(…) como uma prática de gestão
curricular executada entre docentes dos diferentes níveis e ciclos de ensino
alicerçada em práticas colaborativas efetivas de trabalho e reflexão” (Aniceto,
2010, p. 82). Segundo Bravo (2010, p. 123), “o êxito da articulação depende da
abordagem e da crença dos diversos intervenientes e os seus resultados
positivos são conquistados, quando formos capazes de, como docentes, termos uma
postura de partilha e de espírito colaborativo.”
Cada vez mais e como refere Ferland (2006): vivemos
num mundo […] que valoriza a rapidez, a performance, a competição e o êxito
social. As pressões exercidas por este frenesim do desempenho […] De facto,
desde o berço, estes são cercados por expectativas de rendimento; espera-se que
se desenvolvam com rapidez, que realizem aprendizagens muito precocemente. Hoje
em dia, a competição começa à nascença. Que a criança seja a melhor, ocupe o
primeiro lugar, seja precoce na marcha, na fala ou no funcionamento em grupo,
eis o que deixará o seu meio feliz. De certa forma, esperamos que os nossos
filhos envelheçam antes de tempo. (p. 30)
Referências
Ministério da Educação DEB/NEP (2016). Orientações
Curriculares para a Educação Pré – Escolar. Lisboa: Ministério da Educação.
Ministério da Educação (2006). Organização
curricular e Programas do Ensino Básico – 1º Ciclo. Lisboa: Ministério da
Educação, Departamento da Educação Básica.
Niza, S. (2002). Transições. Transições- da 1ª
infância à adolescência. Actas do 2º Encontro do Centro Dr. João dos Santos.
Lisboa: Centro Dr. João dos Santos Casa da Praia.
Sem comentários:
Enviar um comentário