segunda-feira, 29 de maio de 2023

Continuidade educativa e transições

 

Continuidade educativa e transições entre ciclos – conceitos básicos

 A transição entre ciclos é um momento de grande complexidade para os alunos. E embora cada escola encerre em si um conjunto de normas e regras de atuação, efetivados em processos e procedimentos, muitas vezes mais burocratizados do que concretizados, este momento envolve questões mais profundas que devem ser analisadas de forma mais relevante. Para além da continuidade curricular que está retratada nos normativos legais, nomeadamente nas aprendizagens essenciais que se focam essencialmente num continuum de conteúdos, as orientações curriculares do pré-escolar vão mais longe, sublinhando as dimensões psicológica, sociológica, linguística e psicomotora. Há ainda a considerar as dimensões culturais, para além das cognitivas. Sendo assim, a transição não deveria ficar-se apenas por breves momentos de “ponto da situação” entre educadores e docentes, comummente definidos nas escolas, onde é feita a caracterização de cada aluno e em que cada criança é catalogada como “um caso”. A transição, para que a continuidade educativa seja efetiva, deve ir para além de acervos esporádicos, com partilha não apenas de limitações das crianças, mas sobretudo para encontro de estratégias facilitadoras desta transição. Formosinho refere que “quase tudo aproxima a educação básica primária e a educação pré-escolar” (1997, p. 25). A conceptualização da educação pré-escolar como primeira etapa da educação básica (OCEPE, 2016) leva à questão da sua articulação com a segunda etapa, o 1º. ciclo do Ensino Básico.

A transição tem a ver com “passagem de um lugar, de um estado ou de um assunto para outro. É uma passagem que comporta uma transformação progressiva; uma evolução.” (DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA). Segundo Serra (2004), a mudança de ambiente educativo exige sempre uma adaptação por parte da criança, já para Vasconcelos (2009, p. 50) as transições “lembram ritmos de passagem, tempo de passagem” ou o “atravessar da fronteira”. A transição da criança dum ciclo para outro nem sempre é devidamente acompanhada. Já Torrado (1994) diz que quando entra no jardim de infância ou na escola a criança já vem “apetrechada” com o fundamental e o “mais consistente da sua aprendizagem de pessoa.” (p. 47). Para Niza (2002) as transições nem sempre são nocivas ou geradoras de danos no desenvolvimento e aprendizagem das crianças; são naturais e não têm de ser vistas como algo negativo, dão-nos a noção do movimento das nossas vivências: “ É-nos próprio, portanto próprio é natural, a transição (…) vivemos para o trânsito. E às vezes, incomodamo-nos  excessivamente, não acreditando nos efeitos vantajosos das discrepâncias.” As transições não têm de ser negativas. Santos (2002) diz que “ pelo contrário, podem constituir uma oportunidade de crescimento (…) são momentos em que ficamos mais frágeis.”(p. 67). Assim podemos concluir que as transições requerem cuidado para decorrerem de modo natural, sem prejuízo para o sucesso educativo, tendo o apoio de figuras de referência que serão facilitadoras dessa transição.

Quanto à continuidade educativa, Cruz (2008: 74) define a mesma “(…) como um processo global de formação do indivíduo que se desenvolve em etapas harmoniosamente conectadas, em que umas condicionam as outras, por recurso a estratégias de complementaridade de recursos físicos e humanos”. Segundo Zabalza (2004), citado por Cruz (2008: 74) “a ideia de continuidade está subjacente à de união, coerência e complementaridade”, “continuidade não implica repetição, implica introdução ao que é novo, a novas tarefas, apoiadas em significados construídos e experienciados” (Woodhead (1981), referido por Marchão, 2002: 34).

Continuidade educativa vs Articulação

Como é feita esta articulação? O conceito de articulação remete-nos para “encadeamento, conexão; pontos de união entre peças de uma estrutura; juntura por onde partes contíguas se separam facilmente, em dada época, sem rutura.” Sendo , também, pertinente saber o significado de articular, “ligar de forma lógica; unir; ligar.” (dicionário da língua portuguesa). No campo educativo, a articulação curricular sugere uma transição sem ruturas entre ciclos, onde os docentes da educação pré-escolar e do 1.º ciclo devem gerir os currículos construindo pontes que devem ajudar as crianças no seu percurso de passagem. Aniceto (2010, p. 83) refere-se à articulação como “o estabelecimento de mecanismos teóricos e práticos, suscetíveis de encontrarem respostas adequadas e facilitadoras do processo de transição entre níveis e ciclos diferentes, apoiados nos conhecimentos e vivencias anteriores da criança, promovendo a construção de saberes e competências, entre docentes do Pré-Escolar e do 1.º CEB, na base do desenvolvimento de formas de trabalho colaborativo e de novas formas de organização do trabalho ao nível dos órgãos de coordenação”.

Apesar de a articulação curricular e a continuidade educativa se relacionarem e complementarem, existem diferenças entre ambas. Segundo Dinello (1987), citado por Carvalho (2010: 58), “a continuidade educativa é uma perceção exterior do fenómeno, enquanto que numa observação mais profunda se compreende a necessidade de uma articulação para um maior aproveitamento dos ciclos, certamente ligados, mas intrinsecamente diferenciados. Na visão da continuidade aparece uma imagem do produto objetivado, na articulação é o processo que se dimensiona.” A articulação curricular cria nexo entre níveis educativos diferentes, enquanto que a continuidade educativa diz respeito à forma como estão organizados os saberes (Serra, 2004). A autora refere ainda que a articulação curricular são “… todas as actividades promovidas pela escola com o intuito de facilitar a transição entre a educação pré-escolar e o 1.ºCEB, sejam elas actividades dentro do horário lectivo ou fora dele, vividas dentro e fora da escola, …” sendo que “… as diferenças metodológicas existentes entre a educação pré- escolar e o 1.º CEB não são nefastas, em si. Podem, até, trazer mais- valias ao desenvolvimento global das crianças.” (p. 77).

A continuidade nos normativos legais

As OCEPE (Despacho n.º 5220/97) referem que  cabe ao educador promover a continuidade educativa num processo marcado pela entrada para a educação pré-escolar e a transição para a escolaridade obrigatória. (…) é também função do educador proporcionar as condições para que cada criança tenha uma aprendizagem com sucesso na fase seguinte competindo-lhe, em colaboração com os pais e em articulação com os colegas do 1.º ciclo, facilitar a transição da criança para a escolaridade obrigatória” (ME, 1997: 28).

O Decreto-Lei 115-A/98 de 4 de Maio, com o intuito de promover a autonomia das escolas, referindo no artigo 6.º que “a constituição de agrupamentos de escolas considera, entre outros, critérios relativos à existência de projetos pedagógicos comuns, à construção de percursos escolares integrados, à articulação curricular entre níveis e ciclos educativos (…).”

O Decreto-Lei 6/2001, no artigo 3.º, alíneas a) e b), refere que “a organização e a gestão do currículo subordinam-se (…) a princípios orientadores [como a] coerência e sequencialidade entre os três ciclos de ensino básico e articulação com o ensino secundário; [e] integração do currículo e avaliação, assegurando que esta constitua o elemento regulador do ensino e da aprendizagem.”

A Circular n.º17/DSDC/DEPEB/2007 indica-nos ainda que “a articulação entre as várias etapas do percurso educativo implica uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada etapa a função de completar, aprofundar e alargar a etapa anterior, numa perspetiva de continuidade e unidade global de educação/ensino.”

Educação pré-escolar vs 1º ciclo do ensino básica

Na educação pré-escolar a criança constrói o seu próprio conhecimento de maneira lúdica, consoante o seu desenvolvimento, utilizando estratégias e materiais que lhe sejam familiares e situações palpáveis do dia-a-dia, de forma a que a educação nesta altura seja uma experiência prazerosa com conforto e segurança, mas com precaução não só em relação ao desenvolvimento mas também à preparação para níveis de abstração mais elaborados, tendo em atenção o seu nível de desenvolvimento nas várias áreas. Ao pesquisar a organização do tempo, do espaço e a abordagem metodológica dos dois ciclos, aferi que cada nível evidencia características próprias, “ no que respeita quer aos objectivos quer às metodologias específicas.”(Serra, 2004, p. 76)

 

Tabela 1

Comparação da gestão das actividades entre pré-escolar e 1º ciclo .”(Serra, 2004, p. 76)

 

A tabela 1 mostra, que, na Educação Pré-escolar, as crianças têm mais autonomia e gerem o seu tempo, sendo o educador o seu mediador. Ao contrário do 1.º CEB que apresenta uma estrutura mais rígida e controlada apoiada em aprendizagens formais principalmente na aquisição de conhecimentos em áreas específicas do saber (leitura, escrita, matemática, estudo do meio e expressões). A utilização do espaço e do tempo é decidida pelo professor, mas a relação professor-aluno tem duplo sentido, independentemente das opções metodológicas e curriculares dos professores que podem tornar o currículo mais ou menos fechado/tradicional ou aberto/flexível.

Na tabela seguinte existe uma relação entre as áreas de conteúdo desenvolvidas nas OCEPE e o plano curricular do 1.º CEB.


Tabela 2 

Comparação das áreas de conteúdo (adaptado de Serra, 2004, pp. 83- 84)


           





      



                                                                                                                                                                                    



  






 

Através da observação da tabela 2 podemos verificar que existem semelhanças entre os dois níveis de ensino, no que diz respeito aos conteúdos a tratar e apesar da terminologia um pouco diferente, existe uma relação que poderá facilitar a articulação curricular, possibilitando um trabalho de continuidade, protegendo as características das crianças de ambos os níveis referidos.

A análise e reflexão da tabela, indicam que as orientações curriculares e o plano curricular são idênticos, salientando a diferença do aprofundamento dos conteúdos a trabalhar. Assim no plano curricular do 1.º CEB, as temáticas são discriminadas por blocos e repartidas ao longo dos quatro anos de escolaridade, ao passo que nas orientações curriculares não se  encontram essas separações e são feitas apenas sugestões, o que concede ao educador uma maior flexibilidade, contrariamente do que acontece com o professor de 1.º ciclo, que tem de ter gerir o tempo de uma outra forma, pois tem de lecionar/fazer aprender um conjunto de saberes num limitado período.

Constata-se, ainda, que ambos os níveis têm uma concordância centralizada no desenvolvimento da criança na área da formação pessoal e social, o que, não obstante as suas diferenças, significa que existem objetivos em comum e que os seus princípios não são assim tão diferenciados, o que pode levar a uma criação articulada de aptidões para que haja um trabalho de continuidade e uma adaptação positiva da criança de modo a assegurar o sucesso escolar.

A Circular nº 17/DSDC/DEPEB/2007 consolida esta criação articulada de saberes ao mencionar no ponto 5 que: “A articulação entre as várias etapas do percurso educativo implica uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada etapa a função de completar, aprofundar e alargar a etapa anterior, num a perspetiva de continuidade e unidade global de educação/ensino.” Para que a continuidade e sequencialidade dos objetivos e pontos em comum se efetue, é essencial uma atitude proativa e um conhecimento rigoroso e ciente de que estes conteúdos existem, por parte dos professores e educadores.

Importância do educador / professor na transição

Roldão (2004) refere que cabe a cada docente, tendo em atenção os objetivos de cada nível, justificar as atividades que propõe desenvolver, o seu porquê, quando, como as vai realizar e que resultado pretende alcança com elas. Neste sentido, Serra (2004) alega que. para que exista articulação curricular, é fundamental que os professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico tenham, em consideração os conhecimentos que as crianças trazem da educação pré-escolar, que percebam as diferenças de modelo curricular entre os dois níveis educativos e que encontrem, na educação pré-escolar, uma base educativa que lhes será muito útil para desenvolver o seu projeto curricular. (p. 91). Por sua vez, os educadores de infância deverão: conhecer o nível seguinte, o seu modelo curricular e as  exigência impostas pela avaliação formal no final de cada ciclo. É importante, também, conhecer o novo espaço em que se irá desenrolar o 1.º CEB, as potencialidades de desenvolver projectos comuns e a preparação das crianças, ao nível de competências essenciais, para que estas se sintam preparadas para os novos desafios impostos pela escolaridade obrigatória. (p. 91).

É imprescindível que educadores e professores se relacionem, planifiquem atividades conjuntas onde as crianças de ambos os níveis participem com intenção de facilitar o processo de transição. Figueiredo (2006) , diz que esta prática está longe de ser usual e de produzir efeitos reais nas aprendizagens das crianças. Contudo os benefícios deste trabalho conjunto não podem ser desconsiderados no processo de desenvolvimento contínuo, que deve ter em consideração as aprendizagens efetuadas, tendo em conta que cada criança apresenta ritmos de aquisição de conhecimentos distintos. Por isso, apesar de a Educação Pré-Escolar e do Ensino Básico serem duas valências diferentes, uma é a continuação da outra, daí a necessidade de o Ensino Básico se alicerçar nos conhecimentos e vivências que as crianças têm, tentando encontrar uma articulação que beneficie um crescimento apoiado e o sucesso das crianças: como diz Serra (2004, p. 78) “quanto mais os docentes se inteirarem das especificidades e similitudes entre educação pré-escolar e 1.º CEB, mais se enriquece o universo pedagógico dos professores e educadores e maiores serão as oportunidades de sucesso para as crianças”.

Por isso, apesar de a Educação Pré-Escolar e do Ensino Básico serem duas valências diferentes, uma é a continuação da outra, daí a necessidade de o Ensino Básico se alicerçar nos conhecimentos e vivências que as crianças têm, tentando encontrar uma articulação que beneficie um crescimento apoiado e o sucesso das crianças: como diz Serra (2004, p. 78) “quanto mais os docentes se inteirarem das especificidades e similitudes entre educação pré-escolar e 1.º CEB, mais se enriquece o universo pedagógico dos professores e educadores e maiores serão as oportunidades de sucesso para as crianças”.

Conclusões

Tanto as OCEPE (2016) como o programa do 1.º CEB começam com uma sequência de princípios orientadores e pedagógicos que nos encaminham para uma articulação entre os dois níveis de ensino. As aprendizagens ativas, relevantes, variadas e adaptadas, onde a criança distinga as suas possibilidades e os seus progressos, com base em interacções sociais que respeitem as diferentes culturas e promovam a vida democrática, contribuem para ambientes de aprendizagem cooperativa e estimulam a criança na construção do seu próprio conhecimento e da sua aprendizagem, isto é, “requerem do aluno um processo de regulação da aprendizagem que é o que lhe permitirá adquirir uma autonomia enquanto aprendiz - aprender a aprender” (Alonso, 2005, p. 9). E, assim, sendo, segundo Vasconcelos (1997): (…) o docente, professor ou educador, tem de encarar o processo de ensino e de aprendizagem, partindo das crianças reais e concretas a que se destina, inseridas num contexto específico, e vendo-as como sujeitos capazes de regular. “O mais importante é tratar os meninos como pessoas”: a transição da Educação Pré-escolar para o 1.º ano de escolaridade informação e apreender o mundo que a circunda, mediante a sua ajuda e apoio. (p. 34).

Deve partir, de nós, profissionais, a necessidade de criar espaços de partilha e colaboração, com o objetivo de proporcionarem atividades conjuntas, evitando as barreiras entre os dois níveis e viabilizando o processo de transição das crianças. A partilha de momentos entre os dois ciclos é muito importante para as crianças, pois estas criam expetativas sobre a sua entrada na escola e muitos dos seus receios são  desmitificados durante esses momentos, o que torna deveras importante que os docentes desenvolvam atividades que permitam a articulação curricular, considerando-a “(…) como uma prática de gestão curricular executada entre docentes dos diferentes níveis e ciclos de ensino alicerçada em práticas colaborativas efetivas de trabalho e reflexão” (Aniceto, 2010, p. 82). Segundo Bravo (2010, p. 123), “o êxito da articulação depende da abordagem e da crença dos diversos intervenientes e os seus resultados positivos são conquistados, quando formos capazes de, como docentes, termos uma postura de partilha e de espírito colaborativo.”

Cada vez mais e como refere Ferland (2006): vivemos num mundo […] que valoriza a rapidez, a performance, a competição e o êxito social. As pressões exercidas por este frenesim do desempenho […] De facto, desde o berço, estes são cercados por expectativas de rendimento; espera-se que se desenvolvam com rapidez, que realizem aprendizagens muito precocemente. Hoje em dia, a competição começa à nascença. Que a criança seja a melhor, ocupe o primeiro lugar, seja precoce na marcha, na fala ou no funcionamento em grupo, eis o que deixará o seu meio feliz. De certa forma, esperamos que os nossos filhos envelheçam antes de tempo. (p. 30)

Conteúdo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yv60vdh1mCs

Referências

Ministério da Educação DEB/NEP (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré – Escolar. Lisboa: Ministério da Educação.

Ministério da Educação (2006). Organização curricular e Programas do Ensino Básico – 1º Ciclo. Lisboa: Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica.

Niza, S. (2002). Transições. Transições- da 1ª infância à adolescência. Actas do 2º Encontro do Centro Dr. João dos Santos. Lisboa: Centro Dr. João dos Santos Casa da Praia. 

 

 

 



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