quarta-feira, 24 de maio de 2023

A música no ensino do português

 

«A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia.» (L. Beethoven)

 



Do grego μουσική τέχνη (musiké téchne), a música é uma forma de arte que combina sons e ritmos e caracteriza culturalmente as diferentes civilizações. Não se conhece nenhum povo que não possua este tipo de manifestações, por isso a música é vista como um fenómeno e uma prática cultural, que varia consoante o contexto social. Para algumas culturas, a música está ligada à própria vida, para outras tem funções utilitárias (relacionadas com atividades militares, educacionais ou terapêuticas), religiosas, festivas ou fúnebres.

Assim, a música pode ir desde composições fortemente organizadas e improvisos, dependendo do contexto social. A música é, pois, uma manifestação praticada por todas as civilizações, sendo a arte identitária do Homem.

Platão considerava a música como “o mais alto grau de filosofar (Pereira, 2001: 257), pois quem a pratica é “assimilável ao sábio”, que “conjuga o conhecimento musical e a dimensão ética da música, e por isso conhece e distingue as harmonias e ethos de cada uma delas” (Pereira, 2001: 257).

“a música afeta e fere a nossa secreta e recôndita intimidade sensitiva e o nosso potencial intelectivo” (Gorina, 1971: 26), através da conjugação do som, ritmo e melodias.

 

PROPRIEDADES

Na medida em que construímos e vivemos num mundo sonoro, a música tem como matéria-prima o som, “matéria base de toda a especulação sonora e fundamento de toda a estrutura musical” (Gorina, 1971: 11). Assim, o som, “facto psicofisiológico determinado por umas vibrações, cuja altura e intensidade se adaptam às possibilidades de captação do nosso ouvido” (Gorina, 1971: 12), possui cinco propriedades distintas e que se complementam entre si:

·         Altura, determinada pelo número de vibrações por segundo;

·         Timbre, que permite saber qual o instrumento a ser utilizado (voz ou instrumento);

·         Harmónicos, que acompanham o som fundamental;

·         Intensidade, força da vibração e medida pela amplitude da mesma;

·         Duração.

 

OS INSTRUMENTOS MUSICAIS

O uso dos instrumentos musicais (incluindo a voz) parece hoje tão natural, que não questionamos a razão de terem sido criados. O termo instrumento foi usado pela primeira vez na Alemanha entre os séculos XVII e XVIII e, genericamente, é o nome usado “para todos os dispositivos suscetíveis de produzir sons, e que servem como meios de expressão musical” (Henrique, 1988: 15).

Exceto a voz humana, os instrumentos musicais são construídos de modo a que o executante possa explorar as características do som de várias formas, ou seja, cada instrumento possui diferentes campos de variação, designado campo de liberdade, que permite ao executante usufruir do produto de uma forma variada, nomeadamente gama de intensidades, diferentes afinações, extensão de nota e timbre.

Existem muitas formas de classificar os instrumentos, mas, a título de exemplo vamos apresentar a classificação de Hornbostel e Sachs, sistema proposto em 1914, baseado em “princípios acústicos (no modo como os instrumentos produzem som)” (Henrique, 1988: 23).

Neste sistema, os instrumentos são divididos em cinco categorias principais: idiofones, onde o som é produzido pelo próprio corpo do instrumento, membranofones, onde o som é produzido por uma membrana esticada, cordofones, onde o som é produzido por uma corda tensa, aerofones, onde o som é produzido por uma vibração de uma massa de ar e eletrofones, onde o som é produzido a partir da variação de intensidade de um campo eletromagnético.

A voz humana é o instrumento mais difícil de trabalhar, pois a sua natureza não oferece um ponto de apoio quanto à afinação, apenas o próprio ouvido musical, que deve ser sensível à afinação das próprias notas. Por isso, a voz torna-se o instrumento mais perfeito e elevado, porque é capaz de produzir sons que transmitem uma ideia e uma mensagem direta, através dos sons e das palavras.

A MúSICA NO TEMPO

O testemunho musical mais antigo encontra-se na Gruta dos Três Irmãos em Ariège, França, uma gravura de quarenta mil anos, que demonstra que a música inicialmente tinha um fim utilitário, ou seja, servia como meio de comunicação, por exemplo conduzir o gado.

Mais tarde, começou-se a imbuir de um caráter mais transcendente, pois surgiu “a intenção de atuar sobre a psique do ouvinte” (Gorina, 1971: 23). Os próprios instrumentos tinham “funções rituais e um poder mágico, sendo símbolo e atributo dos Deuses” (Henrique, 1988: 16). Até então prática e funcional, a música passou a ser feita para impressionar, tornando-se numa arte, “formada pela suma encadeada de intuições com as quais infindas gerações dotaram de transcendente significado a efémera vibração sonora, que vive uns instantes no tempo e que adquire coerência e sentido ao persistir na memória ordenadora do homem” (Gorina, 1971: 25).

Há tantas histórias da música como culturas no mundo e todas as suas vertentes têm tantos desdobramentos e subdivisões. Considerada pelo homem ocidental como a única evoluída e avançada, é possível delimitar a música do ocidente por três fases:

Primeira fase (de meados do século XIII até ao final do século XVI) – predomínio da música vocal. Esta primeira fase teve bastante influência da música da Grécia Antiga, um estilo marcado pela melodia e monocordia. Sendo uma arte bastante importante para o grego, devido ao seu valor educativo, as palavras predominavam sobre a harmonia, por isso é que se confunde em grande extensão a história da música com a da poesia. Além disso, na Grécia Antiga surgiram as harmonias com os tetracordes (literalmente significa quatro cordas, referindo-se originalmente a instrumentos como a harpa, a lira ou a cítara; quatro cordas correspondem assim a quatro sons). Cada harmonia tinha “um caráter próprio que provocava reações específicas no ânimo do ouvinte” (Gorina, 1971: 30).

Segunda fase (todo o século XVII até meados do século XVIII) – música instrumental e vocal com o mesmo nível de importância.

Terceira fase (a partir de meados do século XVIII) – acréscimo da importância da música instrumental.

«Som em si mesmo não é música. O som só se converte em música através da audiação, quando, como com a linguagem, os sons são traduzidos na nossa mente, para lhes ser conferido um significado.» (E. Gordon)

 

AUDIAÇÃO

Na primeira metade do século do século XX, a maioria dos pedagogos dedicou a sua obra educativa a definir o conhecimento musical e qual o papel da educação no seu processo de desenvolvimento. “Sem dúvida que a forma como se aprende a assimilar música é um fator decisivo para o desenvolvimento não apenas de diferentes maneiras ou qualidades de audição, como de diferentes atitudes ou necessidades perante a música” (Caspurro: 2), ou seja, a forma como se processa a compreensão da música que se ouve é que pode explicar o facto de estarmos perante um músico ou não. De facto, na música não é necessária grande erudição para tocar com excelência ou compor ou executar uma obra musical.

Com isto, foi necessário criar termos e conceitos mais abrangentes do que escuta e audição. O mais recente conceito é inovador: o da audiação de Edwin Gordon, proposto em 1980, isto porque todas as propostas não eram suficientes para explicar a qualidade dos processos cognitivos envolvidos na realização musical. Mais do que fazer, ouvir ou escutar música, era preciso encontrar uma outra palavra que abarcasse todos estes processos.

“À medida que escutamos música, desenvolvemos um centro interno de equilíbrio através de uma sensação de liberdade, tranquilidade, relaxamento e sentimos prazer e expectativa sem ansiedade” (Gordon, 2000: 50).

Ensinar é comunicar. Para comunicar de forma eficaz é preciso que o professor tenha competência científica, pois ninguém fala com clareza daquilo que não sabe. Um professor competente tem de ter uma linguagem rigorosa, adequada à matéria e acessível aos alunos. Além disso, precisa de criar uma boa comunicação com a turma, pois só assim é que consegue perceber as dificuldades, limitações e desmotivações de cada aluno. Conhecendo melhor o aluno, o professor pode adequar o ambiente da sala de aula, tornando-o propiciador a uma relação dialógica e afetiva e que vá ao encontro das necessidades de cada um. Uma sala de aula é um espaço pedagógico, para debater opiniões fundamentadas, aprofundar conhecimentos e desenvolver competências, que permitam refletir, problematizar e agir.

No dia-a-dia deparamo-nos com muita desmotivação, fonte de indisciplina e insucesso e uma das medidas mais importantes para prevenir a indisciplina é investir na motivação dos alunos. Um aluno motivado tende a ser um aluno disciplinado. A música, sendo uma forma de linguagem, é uma arte que percorre os vários momentos da vida do ser humano, exercendo um importante papel na sua formação, através da estimulação da criatividade, da exploração de experiências afetivas e sociais e do desenvolvimento motor e afetivo, ou seja, é um elemento motivador, que previne a indisciplina.

“A música é uma forma de expressão, é manifestação de sentimentos, um meio de comunicação existente na vida dos seres humanos. Devido a sua importância, deve ela estar presente no contexto educacional” (Caetano, 2012: 4). Educar através da arte já é uma proposta antiga, seguida na Antiguidade Clássica. Aristóteles defendia que a audição seria uma tarefa fundamental na formação do jovem e alcance da ἀρετή (areté): “aprender ouvindo os outros cantar e tocar” (Pereira, 2001: 260), pois “a música faz parte radical da natureza humana e brota naturalmente dela” (Pereira, 2001: 260), atingindo o Homem no seu interior, ou seja, ouvindo o som, o ritmo e as melodias a nossa ψυχή (psyché) será afetada, podendo “modificar o caráter ético do homem” (Pereira, 2001: 262). A música é parte integrante dos currículos desde a antiguidade clássica.

Assim, inserir a música no contexto educacional “provoca o desenvolvimento das relações afetivas, psicomotoras, cognitivas e linguísticas. Além disso, a musicalização contribui para o processo de aprendizagem, concentração e memorização” (Caetano, 2012: 75).

 

A MÚSICA COMO RECURSO DIDÁTICO

O uso da música como recurso didático tem sido feito de uma forma pouco didática, quer pela falta de formação do professor, quer pela falta de motivação dos intervenientes ou ainda pela desadequada orientação dos órgãos de gestão.

 Impulsionando as zonas sensíveis do cérebro, a música é como um elemento auxiliar na formação do indivíduo, funcionando como um processo de comunicação e não como elemento chave de aprendizagem.

O professor, ao utilizar os sons, possibilita o processo de ensino-aprendizagem noutra linguagem, desperta e desenvolve nos alunos sensibilidades na observação de questões próprias da disciplina, nomeadamente no melhoramento da leitura, na reflexão e na produção textual. Compreendendo progressivamente a linguagem musical, esta vivencia o que está a aprender. Esta vivência auxilia na construção do conhecimento, na manutenção da cultura e dos valores, desenvolvendo a criatividade, a sensibilidade, a concentração e a interação.

Este uso multidisciplinar torna a sala de aula um espaço prazeroso e, como defendem alguns autores, tem possibilidades aplicativas variadas.

[...] na contextualização de letras previamente selecionadas e relacionadas com conteúdo programático de série; fundo sonoro criado e cuidadosamente escolhido a ponto de servir como clima para o assunto narrado; a construção de letras em melodias já existentes, ou seja, elaboração de paródias; música como instrumento de avaliação, na forma de composição. (Caetano, 2012: 76).

 

A MÚSICA COMO FONTE DE TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS

Como tem variadas possibilidades de aplicação, a música pode ser um ótimo recurso para o desenvolvimento do aluno, pois permite-lhe ter uma maior perceção da vasta cultura que temos. Além disso, permite alargar os horizontes musicais do próprio aluno, quebrando o grupo musical mercantilista em que a sociedade se insere: “a música erudita está em declínio, porque a pessoa comum não foi educada para compreender os aspetos intrínsecos da música” (Gordon, 2000: 453), porém pode ser possível reeducar o aluno, tocando no lado afetivo-emocional e motivando-o. Mesmo que o aluno não tenha conhecimentos musicais, há dispositivos que permitem o diálogo com a música.

 

A MÚSICA COMO ELEMENTO DESENCADEADOR DA AÇÃO

A sala de aula não é uma zona de espetáculo, onde o professor tem o papel de ator e os alunos se limitam a ser uma plateia passiva. Os alunos precisam de participar ativamente, ajudando na formação de cidadãos participativos, no reforço da motivação e na promoção da aprendizagem. Esta aprendizagem não se reduz à transmissão de conhecimentos do professor para o aluno. Atualmente, as aulas interativas são mais estimulantes para a inteligência.

O aluno aprende conteúdos e desenvolve competências interagindo, partilhando saberes e experiências com o professor e com os colegas. Através da partilha de saberes, o aluno alarga as perspetivas, constroi ativamente o seu conhecimento e desenvolve competências de comunicação, necessárias para toda a vida. Desta forma, é essencial escolher recursos que sejam dominados pelo professor, adequados aos temas a lecionar e que despertem a motivação para a criatividade e para o conhecimento.

“A música e o som, enquanto energia, estimula o movimento interno e externo do homem, impulsionando-o à ação e promove nele uma multiplicidade de condutas de diferentes graus e qualidades” (Gainza, 1988, como referido em Biagolini, 2010: para. 3). Ora, sendo vista como um processo contínuo de construção, a música na sala de aula traz ao aluno uma multiplicidade de ações, pois fá-lo sentir o que é transmitido, promovendo o desenvolvimento e construção de conhecimento: “o corpo reage às vibrações dos sons”, desenvolve as suas “capacidades psicomotoras, estimula a memória” e ajuda a “desenvolver a autoconfiança” (Biagolini, 2010: para. 14).

Sentimos, quando reagimos ao objeto que percecionamos, real ou imaginário, como, por exemplo, quando nos emocionamos, cantamos, entoamos e movemos. Percecionamos, quando recolhemos informação do nosso meio ambiente através dos sentidos, como, por exemplo, quando ouvimos executar música. Discriminamos, quando estabelecemos que duas coisas que sentimos e percecionamos não são iguais, mas só audiamos quando somos capazes de evocar e compreender o que sentimos, percecionámos e discriminámos. (Gordon, 2000: 123)

Conclui-se que “se a escola apresenta problemas graves tanto no sentido comportamental como no sentido de aproveitamento e rendimento escolar, pode fazer uso com maior frequência da música no processo contínuo de ensino como forma de motivação” (Biagolini, 2013: para. 19).

“A música funciona como estímulo de comportamentos, seja porque quem a dirige quer induzir a fazer determinada coisa, seja porque nós próprios nos servimos dela para nos estimularmos” (Stefani, 1985: 10).  Constitui-se uma ferramenta eficaz para ativar os circuitos emocionais, que atuam em processos como a atenção, a aprendizagem e a memória, levando a uma mudança de comportamento na sala de aula. É uma ferramenta essencial na transmissão de conhecimentos. A música é a expressão cultural, política, literária, artística…de cada uma das comunidades onde se insere. A música é agente de comunicação. Comunica, ao indivíduo, à comunidade, à sociedade.

 

Bibliografia

       Caetano, M. C. & Gomes, R. K. (2012). A Importância da Música na formação do ser humano em período escolar. Educação em revista. 13 (02), 71-80. Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/educacaoemrevista/article/download/3288/2548.

       Ferreira Ribeiro Félix, G., Góes Santana, H. R. & Oliveira Júnior, W. (2014). A música como recurso didático na construção do conhecimento. Cairu. (4), 17-28. Disponível em: http://www.cairu.br/revista/arquivos/artigos/2014_2/02_A_MUSICA_RECURSO_DIDATICO.pdf.

       Gorina, V. (1971). Que é a música? – Reflexões em torno do facto musical. Lisboa: Editorial Verbo.

 

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